Hoje conheci Nina, uma moça linda mas já um pouco abatida pelas duras
peças que a vida já tinha lhe pregado. Ela devia ter lá pelos seus 24 anos, não
quis ser inconveniente e pergunta-lhe o que não se pergunta para a maioria das
mulheres. Estava em um canto da sala do curso de cultivo de flores, acuada, acanhada, não abria a
boca, apenas observava. Fazia todos os exercícios com muito empenho, como se
estivesse manejando uma joia rara. E de fato, descobri posteriormente, que as
flores o eram para ela. Senti-me bastante atraído e curioso por aquela moça
acanhada, que sempre desviava o olhar. Porém, quando conseguia fitá-los, era
como se ela pudesse ler a minha alma e então quem desviava o olhar era eu. Não
que houvesse algo escabroso para ser descoberto em mim. Apenas queria que ela
me lesse aos poucos e não de uma só vez.
Após uma hora de
curso e algumas tentativas de aproximação, consegui finalmente conversar com
ela. Teríamos que montar em dupla, um jarro com algumas flores ornamentais e
apressei-me para ser seu par. Aproximei-me e perguntei se poderia sentar ao seu
lado. Ela apenas sorriu sem mostrar os dentes e balançou a cabeça
afirmativamente. Apressei-me em dizer meu nome e estender-lhe a mão. Ela
apertou-a de volta e não disse nada. Eu então perguntei o seu. E ela respondeu
muito rapidamente: - Nina. Nina... Seria seu nome verdadeiro? Seu apelido? Na
hora tive ânsia de querer saber tudo sobre ela. Mas até para dizer seu nome ela
havia hesitado, então percebi que ela de fato, não era de falar muito. Não
insisti.
O instrutor fez uma
breve explicação de como gostaria que fizéssemos o arranjo. E ela sempre muito
atenta, anotava cada detalhe em um caderno surrado com desenhos em forma de
sol, como quando os pingos caem sobre o papel. Eu apenas a admirava. Terminada
a explicação poderíamos então dar início ao arranjo, gostaria de discutir com
ela de que forma seria mais conveniente para fazermos juntos. Mas quando me dei
conta, ela já havia levantado e pegado algumas flores. Fui em busca de algumas flores também, preferi as
tradicionais. Sempre fui apaixonado por tulipas e orquídeas, e eram elas as
minhas escolhidas e algumas rosas com tons brancos e rosas. Fomos montando o
vaso sem trocar uma palavra sequer. Enquanto ela montava de um lado, eu montava
do outro e aquele balé era tão perfeito que não precisávamos trocar palavras.
Que experiência enigmática!
Ao final do
exercício, tínhamos um arranjo tradicional e não convencional, mas que ao mesmo
tempo ficou extremamente harmônico. Ficamos muito satisfeitos. Ela me olhou e
sorriu. Deixamos junto ao dos outros alunos para exposição e pude perceber seus
olhos marejados de água. Parecia não querer se despedir dele. Percebi que o seu
amor por flores era maior do que imaginava.
Ao final da aula,
ela mal quis se despedir dos colegas e rapidamente pegou suas coisas. Corri
atrás dela e perguntei se queria uma carona. Ela, sempre falando muito baixo e
de boca quase fechada, disse-me que morava ali perto e que iria a pé. Perguntei
se poderia acompanhá-la. Ela mais uma vez apenas sorriu e balançou a cabeça
afirmativamente. Fomos andando pela rua e me esforcei para saber um pouco mais
daquela moça tão misteriosa. Tentava vários assuntos e ela sempre com respostas
monossilábicas. Até que toquei no assunto das flores e rapidamente senti que
sua energia mudara. Só então consegui que ela se abrisse mais. Passamos por uma
praça e convidei-a a sentar e apreciar o lindo pôr do sol daquele final de
tarde. Ela estava um pouco ansiosa, mas aceitou.
Sentamos e a conversa
foi fluindo até o pôr do sol. Percebi que ela derramou uma lágrima. Nesse
momento, ela me fitou e disse: - eu não sou normal.
Eu entendi
perfeitamente, afinal de contas, quem consegue ser normal nessa nossa
sociedade? Ela balançou a cabeça negativamente e repetiu: - eu não sou normal.
Agora eu havia entendido que de fato ela não
era normal. Mas o que a tornava anormal? Ela respondeu que era uma pessoa
triste, ou melhor dizendo, angustiada. Mesmo quando sua vida caminhava bem, ela
sempre sentia que algo lhe faltava e que mudanças físicas aconteciam quando ela
entrava nesse estado de espírito. Eu perguntei o que mudava, mas ela se calou.
Após alguns
segundos de silêncio, percebi seus olhos marejados novamente, pareciam querer
regar algo nela. Um inebriante e profundo perfume de flor começou a tomar todo
o seu corpo. Não resisti e me aproximei mais dela, queria tomar todo aquele
odor para mim. Toquei seu rosto, e virei-o em direção ao meu. O perfume só
aumentava. Não resisti e beijei-a. Não consigo descrever as sensações que tive
por serem inéditas para mim. Quando paramos, olhei-a e ela me fitou com seus
olhos doces e tristes. Abriu a boca, colocou os dedos dentro dela e deu-me uma
rosa em miniatura. Ela havia tirado uma flor de sua boca! Era de lá que vinha
tanto perfume, por isso evitava abri-la.
Não me assustei,
quis saber como aquilo era possível e ela me explicou que aquela era a mudança
física que acontecia nela quando entrava no estado de espírito de angústia. Que
já tinha tentado se livrar daquilo e que nunca tinha conseguido. Restava-lhe conformar-se
e por isso procurou o curso de cultivo de flores para aprender a cuidar das
suas. Disse que só teve coragem de me mostrar por que sentia o quanto eu amava
as flores e que talvez a compreenderia. Eu fiquei paralisado. Onde havia me
metido? Aquilo era coisa de louco!
Levantei, respirei
fundo e deixei-a fitar meus olhos de perto. Não disse nada, só esperei. Ela
apertou seus olhos como se quisesse criar um foco perfeito e ficou estática. Eu
abracei-a forte. Ela começou a chorar e o perfume das rosas de sua boca foi
diminuindo. Aquela lágrima toda estava afogando suas flores. Ficamos assim por
tempo indeterminado. Por fim, ela se recompôs e disse: - achei que eu estava
sozinha nesse mundo de mágoas e estranhezas, mas pude ver que você cultiva
cravos em sua alma.
Eu peguei na sua
mão e disse: nós somos mais comuns do que você imagina. Que tal cuidarmos um ao
outro dos nossos jardins?